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A Maior chacina da história do Rio de Janeiro completa dez anos

Tiros que mataram 29 pessoas em um bar de Nova Iguaçu continuam ecoando na memória do único sobrevivente da maior chacina do Rio de Janeiro

PMs ocuparam a Rocinha após madrugada com troca de tiros

Passados dez anos, os tiros disparados a esmo em um bar de Nova Iguaçu continuam ecoando na memória do único sobrevivente da maior chacina do Estado do Rio, na qual 29 pessoas foram mortas em dois municípios da Baixada Fluminense. Parentes das vítimas e o promotor do caso que resultou na condenação de quatro policiais militares a quase 600 anos de prisão ainda se lembram de cada detalhe daquela noite de 31 de março de 2005.

A mãe de Raphael Couto, 17, virou militante política, ajudou a escrever um livro e a realizar dois documentários. Anualmente, no dia 31 de março, data da chacina, reúne outros familiares das vítimas e percorre a pé parte do trajeto feito pelos então quatro policiais militares. Na noite da chacina, os agentes, após consumirem 63 latinhas de cerveja em um bar, e em represália a medidas disciplinares de seus superiores, resolveram atirar indiscriminadamente contra pessoas inocentes que encontraram pelo caminho.

"Foi um juramento que fiz no túmulo do Raphael, que não iria deixar a morte dele ser esquecida. É uma caminhada de protesto. Antes eu era somente uma dona de casa, que tinha uma ideia geral da violência. Essa visão mudou. Tudo o que faço me conecta ao meu filho", afirmou Luciene Silva, 48.
Após a morte de Raphael, Luciene se filiou a um partido político e integra uma ONG que ajuda a dar consolo a outras mães que perderam seus filhos em chacinas.

"É uma rede de conforto. Quando soube da chacina pedi, a Deus para consolar as mães que haviam perdido seus filhos, sem saber que eu era uma delas. Fui saber somente no dia seguinte, quando vi a foto dele morto no jornal", disse. Cledivaldo Humberto da Silva, 55, lembra do momento em que foi baleado por um tiro que transfixou seu fêmur direito enquanto bebia em um bar, no centro de Nova Iguaçu.

"A sua boca seca. Dá um branco, tudo para e você entende que sua vida acabou ali. Achei que iria morrer. Mas respirei e virei para a minha mulher. Ela não entendeu o que havia acontecido e me disse 'Eu que bebo e você que cai?'. Ela tinha bom humor. Essa situação toda fez ela piorar de saúde e um ano depois morreu". Silva diz que a violência é algo tão naturalizado na Baixada que, quando escutou os tiros no bar do Caíque, próximo de onde estava, achou que seria uma ocorrência policial.

"Escutei os tiros mas continuei bebendo cerveja com minha mulher. Então, o carro parou na frente do bar em que eu estava e o policial deu um único tiro por cima do capô, que me atingiu. Até hoje essa violência é assim, algo normal aqui.", disse. O nome de Silva foi divulgado pela polícia como morto, pois havia a ameaça dos criminosos invadirem o hospital e matá-lo. Isso porque o policial que atirou era o mesmo que, como demonstração de poder costumava ir ao bar e mandar o jogo de carteado parar, antes das 22h.

Os investigadores, então, o transferiram para outra unidade de saúde seguindo o procedimento hospitalar usado para os mortos: pela porta de trás do hospital, deitado em uma maca, coberto por um lençol. "Tive que ficar uma hora sem me mexer, me fingindo de morto. Muita dor e não podia nem gemer". Silva foi transferido para outro Estado e, com saudade da mulher, que era cardíaca, saiu do programa de proteção a testemunha um mês depois. Até hoje, não pode mais trabalhar com obras por conta da perna, e toma remédios diários para as dores.

"Esses policiais acharam que iriam ficar impunes. Mas só trouxeram sofrimento. Mudaram nossa vida e a vida dos familiares deles também. Minha vida mudou. Quando vejo um policial, desvio. Reconheci no tribunal um deles e tenho medo que venham atrás de mim como vingança. Eles tiraram minha qualidade de vida, mataram muitos amigos meus. Tenho medo ainda", disse.

O mesmo sentimento de ameaça sente o promotor do caso, Marcelo Muniz. Desde que conseguiu a condenação dos quatro envolvidos a penas que beiram os 600 anos de prisão, possui segurança e, volta e meia, é ameaçado de morte. A última ameaça ocorreu há menos de uma semana, o que fez o Ministério Público encaminhar fotos dos condenados na chacina para seu segurança.

"Quando soube da chacina, passei uma semana sem dormir. Sabia da responsabilidade e não acreditava na barbárie. Esse caso me marcou tanto que sei todos os detalhes, mesmo tanto tempo depois", afirmou. Muniz mantém contato até os dias atuais com Cledivaldo, uma das testemunhas-chaves. "Me marcou o fato de a carteira de identidade dele ter sido perfurada pelo mesmo tiro que transfixou a perna dele. Usei isso no tribunal. Tudo o que você é está na sua identidade. É a sua cidadania. Aquele disparo foi um tiro da barbárie na cidadania e nos valores da sociedade".

O bar onde Cledivaldo foi baleado não funciona mais, assim como o estabelecimento distante cerca de 200 metros, onde 10 pessoas foram mortas, a maioria jovens entre 13 e 20 anos que jogavam fliperama. No muro, ainda com marcas de tiros, pintado com a cor amarelo vibrante, uma palavra que remete ao sentimento dos familiares foi escrita: saudades.

Cronologia

2005, 30 de março - Em represália à Operação Navalha, que prendeu oito policiais, PMs matam duas pessoas e jogam uma das cabeças dentro do batalhão de Duque de Caxias.

31 de março- Flagrados por câmeras, oito policiais militares são presos pelo ato.

16h - Cinco policiais se reúnem em um bar e bebem 63 latinhas de cerveja.

19h50 - Um dos PMs vai embora e outros quatro entram em um Gol branco.

20h a 22h - 29 pessoas são mortas nos municípios de Queimados e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Onze delas têm idades entre 13 e 20 anos; duas são mulheres com 27 e 43 anos; os outros são homens com idades entre 23 e 64 anos.

05 de abril - Decretada a prisão temporária dos cinco policiais suspeitos.

03 de maio - Governo anuncia pensão vitalícia de 1 a 3 salários mínimos para famílias das vítimas.

19 de maio - Ministério Público denuncia 11 policiais, que têm a prisão preventiva decretada. Somente 7 vão a júri popular.

2006, 21 de agosto - O policial Carlos Carvalho é condenado a 534 anos de prisão.
10 de outubro - O policial Gilmar Simão, que cooperava com a investigação, é morto com 15 tiros.

2007 José Augusto Felipe é condenado a 534 anos de prisão.

2008 Fabiano Lopes, que deixou o bar antes dos homicídios, é condenado a 7 anos por formação de quadrilha.

2009 Julio Cesar de Amaral é condenado a 534 anos de prisão; Marcos Siqueira Costa, a 474 anos, e Ivonei de Souza é absolvido.

2012 Justiça determina que Estado pague indenização às famílias, no valor entre 10 e 50 salários mínimos.

2015 Duas já receberam o valor da indenização e outras 27 estão com precatórios.

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