Um milhão de famílias entrarão para as classes D e E até 2025
Estica, aperta e corta se tornaram palavras de ordem para lidar com o desemprego e a alta de preços na casa de Glória de Oliveira Brito e Anderson Ornelas, ambos de 42 anos. Depois que Anderson perdeu o cargo de gerente num areal, no início do ano, a renda da família foi reduzida a um terço, para R$ 1.300. A rotina sofreu mudanças drásticas: TV a cabo é coisa do passado, assim como as idas ao shopping e a lanchonetes com as três crianças — Maria Fernanda, de um ano e 7 meses, Daniel, de 6 anos, e Gabriela, de 10 —, que abandonaram as aulas de judô e balé. As viagens habituais para Belo Horizonte e para a Região dos Lagos já não fazem parte dos planos. E até os livros escolares dos filhos mais velhos de Glória só puderam ser comprados no meio do ano.
Nos últimos anos, desde que a economia mergulhou na recessão, o cotidiano das famílias de baixa renda se tornou mais austero. E tudo indica que o cenário vai demorar a mudar. Estudo da Tendências Consultoria Integrada mostra que, até 2025, haverá expansão da pobreza mesmo com a perspectiva de retomada da economia. As famílias das classes D e E — com renda mensal de até R$ 2.166 — continuarão a crescer e chegarão a 41 milhões. A comparação das projeções para este ano e o de 2025 indica que as classes D e E devem ganhar mais um milhão de famílias. Diversos fatores contribuem para a projeção, como a migração de famílias da classe C que não conseguem manter o padrão de vida conquistado, e o surgimento de novas famílias, que se formam em condições piores.
A deterioração do cenário impressiona, especialmente à luz das conquistas da década passada. Entre 2006 e 2012, quando o Produto Interno Bruto (PIB) crescia, em média, 4% ao ano, 3,3 milhões de pessoas ascenderam das classes D e E para a C, que abrange lares com renda entre R$ 2.166 e R$ 5.223, de acordo com o critério de classificação econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep).
Com a recessão e a alta da inflação, os ganhos desse período se perderam de 2014 a 2016, período em que as classes D e E tiveram aumento de 3,5 milhões de famílias. Com base no estudo, nem mesmo uma década será capaz de aliviar integralmente os efeitos da recessão. O aumento na base da pirâmide deve ocorrer em ritmo mais moderado, mas, ainda assim, somente de 2019 a 2025, período para o qual se prevê expansão da economia, serão mais 438 mil lares.
— Quando você conduz mal a política econômica, deixa a inflação subir, as mais prejudicadas são as famílias de menor renda. Aliado a isso, se deixou que os gastos públicos subissem muito. A combinação de BNDES inchado, isenções de impostos e incentivos a setores não beneficiou os mais pobres. A economia mais fechada e com viés estatizante impediu maior concorrência e oferta de preços menores. Isso privilegia alguns poucos e prejudica a maioria — avalia Adriano Pitoli, economista, autor do levantamento e diretor da área de Análise Setorial e Inteligência de Mercado da Tendências.
Modelo frágil de mobilidade social
O problema nos próximos anos, segundo Pitoli, é que a “fórmula mágica” que permitiu a ascensão dos mais pobres entre 2006 e 2012 — com expansão do consumo das famílias no dobro da velocidade do PIB e ampla criação de vagas para mão de obra menos qualificada em comércio e serviços — não deve se repetir. Especialistas destacam também outros componentes que impulsionaram a mobilidade social na década passada, como a política de valorização do salário mínimo, que acumulou crescimento real de 72,31% entre 2003 e 2014, o crédito facilitado, a inflação controlada e a entrada de mais mulheres no mercado de trabalho.
— Há muita coisa errada para consertar na economia. O mercado vai continuar muito fraco. As empresas vão demorar a voltar a contratar. Daqui por diante não tem mágica. As famílias vão ter de se acostumar a viver com menos por mais tempo — resume Pitoli.
Com o quadro adverso na economia nos últimos anos, o nível de endividamento das famílias saltou de 18% da renda em 2005 para 30% no ano passado. Para especialistas, a rápida deterioração evidencia a vulnerabilidade do último quadro de expansão.
— Chama a atenção a intensidade do movimento. Ele sugere uma fragilidade da mobilidade social promovida anteriormente. É claro que é bom ter geladeira, carro, televisor e viagem de avião, mas não torna permanente a capacidade de a pessoa se sustentar, dar educação e saúde de qualidade aos filhos — avalia Gesner Oliveira, economista, professor da FGV e pesquisador na área de infraestrutura social.
Para as famílias que sentem no dia a dia o retrocesso na qualidade de vida, o jeito é se adaptar ou escolher criteriosamente quais gastos preservar. Glória e Anderson, que estão desempregados, tiveram de abrir mão do conforto de viver numa casa de dois andares, em Bangu. Eles alugaram o térreo a uma outra família. Junto com o aluguel de outro imóvel, herdado por Glória, esta se tornou a renda familiar no momento. Além de jogo de cintura, a mudança exigiu que eles transferissem a cozinha para o terraço e instalassem uma escada caracol para garantir o acesso direto ao segundo andar. Segundo Glória, a prioridade é preservar a qualidade da alimentação dos filhos.
— Eles têm de ter na mesa aquilo ao que já estão acostumados. A gente deixa de comprar roupa, estica dali, mas não corta alimentação. Os meses que meu marido trabalhou na Ceasa foram ótimos. Ele podia trazer para casa o que não era vendido. Chegava com “tonelada” de inhame, melancia, brócolis e couve-flor — conta Glória, em referência a um bico de três meses que o marido fez transportando alimentos.
Perda de bem-estar
Para Miguel Foguel, economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nas áreas de mercado de trabalho e desigualdade, a perda de bem-estar é um dos efeitos mais duros sobre as famílias, principalmente porque pode respingar na educação:
— Não é de se estranhar que crianças deixem de ir à escola para trabalhar ou que jovens adiem a entrada na faculdade pela mesma razão.
Apesar do prognóstico negativo para os próximos anos, Carlos Antonio Costa Ribeiro, sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj, avalia que a perda de bem-estar é longe de ser irreversível. Ele aponta duas razões: a chamada mobilidade intergeracional, que mede se os filhos vivem em condições melhores que os pais, tem mostrado resultados positivos, e o ritmo menor de crescimento da população:
— As pessoas estão tendo menos filhos. O Brasil tem taxa de reposição menor do que dois, está em 1,8 filho por família. Se a população diminui, e o sistema educacional continua se expandindo, isso significa menos gente entrando na economia ao longo do tempo, com maior escolaridade.
Oliveira condiciona a sustentabilidade da ascensão de classe à melhoria do que chama de infraestrutura social: educação, saúde, saneamento básico e segurança:
— Precisamos de foco na eficiência e na qualidade da infraestrutura social para obter resultados melhores do que as projeções. Caso a família perca o plano de saúde e a possibilidade de manter o filho em escola particular, poderia encontrar bons hospitais públicos. Um grande investimento nessas áreas pode fazer a diferença e criar ascensão social mais lenta. Com isso, não ocorreriam grandes movimentos de consumo ou euforia, mas a construção de uma nação mais igualitária.
Enquanto a realidade se mostra menos acolhedora, as pessoas se adaptam como podem: topam ganhar menos, fazem trabalhos temporários, dirigem Uber ou trabalham por conta própria, lista Foguel:
— Elas aceitam para se defender, mas acabam contribuindo para piorar a renda.
Glória está desempregada há três anos. Reclama que o mercado é cruel com quem tem mais de 40 anos e três filhos. Desde então, a técnica em TI só conseguiu um trabalho temporário de três meses, durante os Jogos Olímpicos. Comemorou como se fosse promoção:
— Trabalho desde os 15 anos. É muito difícil ser só dona de casa. Cansa. Mexe com o emocional. Resolvi aceitar essa oportunidade e invertemos os papéis. Foi ótimo. O Anderson cuida das crianças melhor do que eu. É muito rígido com os horários: elas dormiam cedo, só faziam as refeições na mesa, e, antes do meio-dia, o almoço estava pronto.
Glória cansou de procurar emprego. Investiu R$ 400 em equipamentos e montou um salão de beleza em casa, que deve abrir esta semana. Anderson vai usar a experiência na direção para trabalhar como motorista do Uber. Esperam, assim, aumentar a renda da família em, pelo menos, R$ 1.000.
Jampa Web Jornal
Fonte:Agencia Globo
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