GOLPE MILITAR: 54 anos depois...
Foto: No sentido horário: Cid Benjamin, Mauro Santayana, Lalo Leal Filho e Carlos Eugênio Paz |
A ditadura mudou para sempre a vida social e política do Brasil, e deixou um legado que até hoje afeta a vida dos brasileiros. Para entender o início, epicentro e fim do regime militar, Conexão Jornalismo ouviu quatro brasileiros que viveram ativamente o período, seja como protagonistas da história ou estudiosos do tema.
O jornalista e articulador da campanha de Tancredo Neves, Mauro Santayana, que estava em missão diplomática no Paraguai no dia do Golpe; o escritor e ex-comandante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Carlos Eugênio Paz, conhecido também pelo nome de guerra "Clemente" dos tempos que combateu com Carlos Marighella; o jornalista, sociólogo e ex-guerrilheiro do MR8, Cid Benjamin, que hoje integra a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro; e o escritor, sociólogo e jornalista Laurindo Lalo Leal Filho.
O BRASIL E O GOLPE
Soldados reprimem protesto popular com fuzis e baionetas
Nos dias 31 de março e 1 de abril de 1964, militares que se opunham ao governo de João Goulart tomaram as ruas das capitais do país. Enquanto Jango deixava Brasília em direção ao Uruguai, partidos da oposição já articulavam a derrubada do presidente.
O golpe era uma reação às Reformas de Base propostas por Jango. Dentre elas estavam programadas as reformas Agrária, Urbana, Tributária e o direito de voto aos analfabetos. As medidas contavam com apoio popular, conforme pode aferir uma pesquisa do Ibope realizada uma semana antes do golpe e que dava ao presidente a simpatia de 72% da população. Apesar do apoio, que poderia indicar uma resistência maior do presidente e colaboradores, não houve reação.
Um dos decanos da atividade do Jornalismo no Brasil, Mauro Santayana, na época colaborador da embaixada brasileira no Paraguai para as negociações da Usina Hidrelétrica de Itaipu, lembra que essa não era a primeira tentativa de um golpe militar no Brasil:
- As tentativas de golpe vinham de antes, ainda. O suicídio de Getúlio, um golpe branco, foi em decorrência das pressões por sua saída do governo feitas por Carlos Lacerda e militares golpistas. Contra Juscelino também houve várias tentativas de Golpe, antes ainda da sua indicação como candidato, na sua posse e depois de sua chegada à Presidência - explicou.
Segundo o sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho, o motivo da pouca resistência dos governistas é que a esquerda do país apenas aparentava ser organizada, mas tinha fraquezas:
- Era um blefe. O Partido Comunista era um partido esclarecido, mas que não tinha organização para resistir ao golpe. Também se acreditava que um dispositivo militar de Jango iria prevenir o golpe, mas isso não aconteceu. - explicou o sociólogo. O chamado "dispositivo militar" era o nome dado aos generais leais à presidência, dos quais era esperado que não aderissem ao levante.
Mas para um dos líderes dos guerrilheiros do país, o escritor Carlos Eugênio da Paz, que lutou na ALN durante sete anos, os militares foram bem-sucedidos porque já tinham estudado o golpe há muito tempo:
- Nós não estávamos lidando com um bando de pamonhas. Houve muitos acertos na estratégia dos militares. Eles conseguiram dar um Golpe de Estado numa época em que a esquerda era forte, organizada e combativa, muito mais que hoje - lembra ele.
AI-5: O GOLPE DENTRO DO GOLPE
O Ato Institucional Número Cinco foi o mais autoritário de todos os atos decretados pelos militares. Baixado em 1968 pelo governo Costa e Silva, suspendia o direito ao habeas corpus e dava ao Presidente da República poderes ditatoriais para suspender o Congresso e os direitos civis dos brasileiros.
Reunião que instituiu o AI-5
"Algumas pessoas pensam que a tortura começou no AI-5. Na verdade a tortura começou no primeiro dia de golpe", disse Carlos Eugênio "Clemente", que na época do Ato já integrava as fileiras da ALN. O ex-guerrilheiro explica que a tortura funcionava como uma política de governo:
- Ao suspender o Habeas Corpus, o regime transformou a tortura em política de Estado. E passou a ser adotada como forma de causar medo à população, para desencorajar qualquer forma de enfrentamento ao governo.
Mauro Santayana garante que a corrente golpista era minoria nas Forças Armadas em 1964, mas cresceu por conta da não-resistência aos militares:
- Os militares mais radicalmente golpistas e anticomunistas eram uma minoria nas Forças Armadas, ou teriam tido força para derrubar a democracia anos antes. Uma vez instalados no poder, eles usaram o terror, a repressão e o discurso anticomunista para pressionar os companheiros de farda que queriam uma intervenção militar curta. Perseguiram os próprios líderes civis que haviam apoiado a derrubada de Jango - O jornalista aproveita para fazer um alerta: "que isso sirva de lição para qualquer homem público ou oficial das Forças Armadas que queira embarcar em uma aventura golpista no futuro".
O sociólogo Lalo Leal Filho diz que o AI-5 foi uma resposta do governo à perda de apoio político de setores que antes apoiaram o golpe, e percebiam agora que os militares não desejavam sair do poder. As críticas partiam agora de líderes civis como Carlos Lacerda e grupos empresariais:
- Quando os militares deram o golpe, o argumento era que seria um período curto no poder, para fazer eleições em 1966 sem Jango e partidos da esquerda. Com a oposição forte, e com as guerrilhas que começavam a surgir, o governo precisava de um mecanismo de repressão, acabando com qualquer possibilidade de resistência pacífica.
A LUTA ARMADA
Carlos Eugênio "Clemente" entrou para a luta armada depois de conhecer Carlos Marighella, um dissidente do Partido Comunista (PCB). Marighella propunha o que mais tarde virou um movimento de guerrilha urbana: a ALN.
- Ele dizia que essa era uma luta que ia levar muito tempo, e que nós só estávamos plantando as bases de uma revolução para derrotar o regime e restaurar a democracia. O objetivo era arrecadar recursos através dos assaltos a bancos e ataques a quartéis para começar uma guerrilha rural.
A ALN foi apenas uma das dezenas de organizações armadas que surgiram como reação ao golpe de 64. Indignados com a falta de uma resistência dos líderes políticos da época - como o próprio presidente João Goulart - esses grupos pegaram em armas contra os militares.
À época com 18 anos, Cid Benjamin entrou para o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), enquanto frequentava a universidade. Em 1968, o grupo planejou e executou o mais espetacular movimento contra a estrura militar: o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick. Além dele compunham o grupo Franklin Martins e Fernando Gabeira, entre outros. Ele conta como surgiu a ideia da ação:
- Eu estava andando pela rua com Franklin Martins quando vimos o carro oficial do embaixador, todo arrumado com bandeiras e sem escolta. Então começamos a pensar se seria possível fazer um sequestro para exigir a libertação de companheiros de luta presos. - contou.
A ação foi bem sucedida ao libertar 15 presos políticos e publicar uma mensagem do MR8 e da ALN nos principais veículos de comunicação do país. Depois do sucesso, houve outros três sequestros de diplomatas: O cônsul japonês Nobuo Okushi, trocado por cinco prisioneiros políticos em São paulo; o embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, cujo sequestro resultou na libertação de 39 presos, incluindo o próprio Cid Benjamin; e o cônsul da Suíça Giovanni Enrico Bucher, cujo sequestro rendeu a libertação de 70 presos.
Os 15 presos soltos pelo sequestro: Luís Travassos, José Dirceu, Vladimir Palmeira, José Ibrahim, Flávio Tavares, Gregório Bezerra, Onofre Pinto, Ricardo Vilas Boas, Rolando Fratti, Agonalto Pacheco, Mário Zanconato, Ivens Marchetti, Leonardo Rocha e Mar
Mas apesar do sucesso de ações de como essa, as guerrilhas acabariam desmanteladas pela repressão na década seguinte. Em autocrítica, Cid Benjamin acredita hoje que a luta armada não foi a melhor estratégia para combater os militares:
-A luta armada não tinha condições de derrotar a ditadura naquele momento, porque não mobilizou a sociedade. Nesse sentido, acho que foi uma estratégia errada", explicou.
A LEI DE ANISTIA
Brasileiros exilados, auto-exilados ou foragidos puderam finalmente retornar para casa depois da Lei de Anistia em 1979. Promulgada pelo último presidente militar, general Figueiredo, a lei concedia "perdão" a todos os crimes políticos desde 1961. Desta forma, os responsáveis pelas mortes, torturas e desaparecimentos de centenas de pessoas permaneceriam impunes. Para muitos, este foi o ponto mais alto da distensão do governo militar. O regime ditatorial dava claros sinais de desgaste por conta das crises econômicas, escândalos de corrupção e baixo crescimento social.
A campanha pela Anistia mobilizou diversas passeatas
- O que a lei fez para os torturadores é um absurdo, porque trata a tortura como um crime político, um crime conexo. Se você rouba um carro para assaltar um banco, o roubo é conexo ao assalto, mas Se o policial que captura o ladrão usa tortura, você não pode dizer que isso é crime político.
O sociólogo Lalo Leal Filho também é da corrente que vê a promulgação da Lei como uma demonstração de fraqueza da ditadura:
- Nas eleições de 1974 a ARENA é derrotada fragorosamente, e isso mostrou que havia resistência à ditadura, e levou à aprovação da lei da anistia, mas da forma como foi: controlada e protegendo os torturadores. Em dezembro de 2013 a Oraganização das Nações Unidas (ONU) denunciou a Lei de Anistia como um "obstáculo para a Justiça". Na ocasião, a secretária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Navi Pillay, disse que os casos de tortura "precisam ser levados a julgamento".
Povo lota o congresso aguardando votação da Lei de Anistia
HERANÇAS DA DITADURA
A morte e o desaparecimento de lideranças políticas durante os anos do regime impediram a renovação da política no Brasil. Seus efeitos até hoje podem ser sentidos em vários aspectos. Meio século após o golpe, Carlos Eugênio vai além. Para ele, o legado é tão devastador que é como se a ditadura não tivesse terminado:
- Tenho uma má notícia: ao meu ver a ditadura não acabou no Brasil, porque nunca foi derrubada. Os militares saíram do poder seguindo a estratégia do governo de Ernesto Geisel, de fazer uma distensão "lenta, gradual e segura", de volta à democracia.
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O sociólogo Lalo Leal Filho, vê o enfraquecimento do regime como o motivo dessa "saída". As "crises econômicas, políticas e mesmo dentro das Forças Armadas exigiram o fechamento de um ciclo". Para ele, a herança negativa da ditadura apresenta três principais aspectos que ainda interferem na nossa vida política e econômica: "O hiato político de 21 anos nos quais não houve partidos livres; O alinhamento econômico do governo com os Estados Unidos, no lugar do desenvolvimento de uma política econômica brasileira; e, por último, a corrupção."
A rodovia Transamasônica, alvo de desvios milionários de verbas, nunca foi concluída
- Claro que sempre houve corrupção, mas nunca da forma como passou a existir durante a ditadura. Ela só não vinha à tona porque havia censura. Como não existiam mecanismos para regular o governo, as autoridades se sentiam à vontade para agir. Não tenho dúvida que essa corrupção que vemos hoje é uma herança da ditadura.
COMISSÃO DA VERDADE
Em 2011 foi instituída a Comissão Nacional da Verdade, que foi criada para desvendar violações de Direitos Humanos praticados por agentes do governo consideradas graves no país. A Comissão Nacional recebe o apoio de comissões análogas criadas nas esferas estaduais e municipais. A nacional investiga o período entre 1946 e 1988, especialmente os anos após o golpe militar de 1964, já que muitos crimes da época foram e permanecem escondidos.
A ex-presidenta Dilma na abertura da Comissão Nacional da Verdade
Também a morte por infarto de João Goulart, exilado na Argentina, teria sido tramada, segundo investigações mais recentes. Em 2013 seu corpo foi exumado para determinar se a medicação cardíaca do ex-presidente fora alterada com uma droga possivelmente fabricada nos Estados Unidos. Essa acusação foi feita em 2008 pelo ex-agente de inteligência uruguaio Mario Neira Barreiro. Ele disse que a ordem para o envenenamento partiu do presidente brasileiro Ernesto Geisel, passada pelo delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) Sérgio Paranhos Fleury.
Mesmo a morte de Carlos Lacerda, que foi um dos idealizadores da própria ditadura, também é suspeita e teria sido motivada por "forças externas". Ele também teve um ataque cardíaco.
Cid Benjamin, que trabalha na Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, fala da importância das investigações sobre o período:
- Alguns documentos importantes permanecem inacessíveis. E esta é uma oportunidade para que finalmente se lance luz sobre uma triste página da história do país. E um povo que não conhece a sua história, está fadado a repeti-la - concluiu.
Jampa Web Jornal
Fonte:conexaojornalismo|Eric Andriolo com edição de Fábio Lau; vídeo de Douglas Mota/Republicaçãoe edição/JWJ/Jorge Correia/J.Alves
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