Transformamos pobres em consumidores e não em cidadãos.
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Mujica vive nova fase de projeção internacional graças a dois filmes em cartaz nos EUA: um aborda seu período na guerrilheira e o outro, após a Presidência.
Em entrevista à BBC News Brasil, o ex-presidente do Uruguai José Mujica reforça uma admissão de culpa sobre o que considera ter sido uma falha dos governos de esquerda na América Latina.
"Conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente (pobres) a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos", diz ele em Los Angeles, nos Estados Unidos.
Mujica estava na cidade por causa de dois filmes que retratam momentos de sua vida: o longa de ficção A Noite de 12 Anos, do uruguaio Álvaro Brechner, e o documentário El Pepe,Una Vida Suprema, do sérvio Emir Kusturica.
José Mujica se aposentou no Senado para se dedicar mais a sua fazenda.
Questionado sobre sua opinião em relação ao novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, Mujica diz acreditar que "talvez as promessas sejam piores do que a realidade" e aventa dificuldades no governo do capitão reformado.
"O ministro da economia, superfavorável a um mercado aberto, superliberal, vai ter que lidar com a burguesia de São Paulo, a mais protecionista que existe na América Latina. Como se resolve uma contradição dessas?", pergunta.
Mujica também falou sobre crise migratória, legalização das drogas e expansão da direita na América Latina.
BBC News Brasil - Como o Sr. avalia a expansão da direita na América Latina? A esquerda falhou? Como?
José Mujica - Temos muita gente com fome, sem abrigo ou com casas miseráveis, e conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos - os processos são lentos demais, é mais fácil resolver de imediato o problema da (falta de) comida, porque é algo que fala de imediato à nossa consciência. Mas não conseguimos cortar a imensa dependência que temos deste mundo atual que se expande cada vez mais. Queremos consumir como o primeiro mundo enquanto ainda não resolvemos nossos problemas mais básicos. Isso resulta na criação de condições brutais de vida.
"Cada lei é uma negociação à parte. Então, em vez de ser um parlamento, o Congresso (brasileiro) acaba virando uma bolsa de valores", afirma Mujica
O mundo desenvolvido começou a caminhar 200 anos antes de nós, fez muitíssimos sacrifícios, pagos pelo povo, os únicos que trabalhavam 12, 14 horas por dia, e assim se capitalizaram. E no mundo colonial... tudo isso, não é? Nós chegamos tarde, corremos atrás, mas nem tudo está perdido. Não creio que a extrema-direita possa fazer mais além de concentrar ainda mais a riqueza. E, por infelicidade, teremos que aprender a ser mais pacientes, e continuar trabalhando. Os termos "esquerda" e "direita" são muito modernos, mas as faces do conservadorismo e da solidariedade são tão antigas quando a existência dos humanos sobre a Terra. Seguiremos em frente.
BBC News Brasil - E o Brasil acaba de eleger Jair Bolsonaro, considerado como representante dessa onda de direita...
Mujica - Creio que o povo brasileiro encontrará um caminho para resistir, em parte, e preservar o que tem de melhor em si. Talvez as promessas sejam piores do que a realidade. Não sei como (o futuro governo) poderá resolver contradições como esta: colocar um ministro da economia, superfavorável a um mercado aberto, superliberal, que vai ter que lidar com a burguesia de São Paulo, a mais protecionista que existe na América Latina. Como se resolve uma contradição dessas? Não sei. Uma coisa são as palavras, outras são os fatos.
BBC News Brasil - Como o Sr. avalia a atual situação de imigração nos Estados Unidos, especialmente diante das ondas de caravanas de imigrantes da América Central?
Caravana de migrantes latinos tenta cruzar fronteira dos EUA.
Mujica - Quando acabou a Primeira Guerra Mundial, as condições que foram impostas aos perdedores foram tão severas que o jovem (economista britânico John Maynard) Keynes disse "isso é horrível, vai nos levar a um desastre!". E assim se deu. Mas depois da Segunda Guerra Mundial ficou bem claro (para os Estados Unidos) que a única solução possível era o Plano Marshall - era preciso levantar a Europa. Por quê? Porque estavam com medo, assustados, porque ali ao lado morava o urso soviético.
Para resolver a questão da imigração, os Estados Unidos têm que ajudar a levantar a América Central. Essa é a grande resposta. O oposto disso é gastar uma fortuna na fronteira dizendo "não", quando na verdade eles precisam dizer "sim". Quem vai limpar a casa dos ricos? Quem vai trabalhar o solo? Quem vai desentupir os canos? Por favor! Por isso me parece dramaticamente ridículo o que está se passando.
BBC News Brasil - Para muitas pessoas, especialmente os jovens, o Sr. ficou conhecido como a pessoa que legalizou a maconha no Uruguai. E agora a Califórnia legalizou a maconha, e muitos outros Estados americanos fizeram o mesmo. Qual foi o resultado desse experimento em seu país?
País aprovou em 2013 lei liberando consumo de cannabis; última etapa é venda em farmácias.
BBC News Brasil - Agora que o Sr. não é mais presidente, como vê o que está sendo feito no Uruguai?
Mujica - O atual presidente (Tabaré Vázquez) é um velho amigo meu, está fazendo o que pode. Nós não temos uma varinha mágica ou um antídoto universal, somos parte deste mundo. O que as repúblicas modernas devem estar fazendo é gritar contra os remanescentes do feudalismo e das monarquias divinas, dizendo que somos todos iguais. Não se deve lutar pela maioria do voto se você não partilha das aspirações e frustrações da maioria. Em outras palavras, para ser bem claro - eu acredito que governantes devem viver como pessoas comuns. Eles deveriam abandonar os resquícios do feudalismo, os tapetes vermelhos, as fanfarras, a corte de bajuladores. Temos que voltar às fontes do republicanismo. Mas é muito difícil.
BBC News Brasil - O Sr. se tornou uma figura quase mítica tanto na América Latina quanto na Europa. Tem algum receio de que, com o tempo, suas palavras sejam distorcidas ou mal compreendidas?
Mujica - Isso certamente vai acontecer. Certamente. Como dizia o poeta Luis de Góngora, "fazer poesia é dizer uma coisa por outra". Para satisfazer as necessidades jornalísticas, para ter uma boa manchete, as pessoas tiram palavras de seu contexto. Isso é inevitável. Mas eu durmo bem à noite. Vivo na mesma casa há 34 anos, mais ou menos. Fui ministro, senador, presidente, e nada disso me subiu à cabeça. Sou um homem humilde, como a maioria das pessoas do meu país, e é assim que quero morrer. O resto eu acho divertido. Deixe que eles se divirtam. No fim das contas, comparados com o universo, somos todos menores do que as formigas.
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Fonte:Ana Maria Bahiana/De Los Angeles para a BBC News Brasil/JWJ/Jorge Correia/J.Alves/Fotos: EPA/AFP/Getty Imagens
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