Há mais de 40 anos, feito um profeta, Raul Seixas previu que a terra iria mesmo parar...
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Pequenas considerações sobre a crise do coronavírus e a canção “O dia em que a terra parou”, de Raul Seixas e Cláudio Roberto
Raul Seixas, o nosso Raulzito, sempre teve um quê de profeta. Não à toa, seus fãs, muitas vezes, parecem mais seguidores. Uma espécie de Antônio Conselheiro do rock tupiniquim – e Raul lidava com essas distâncias entre o hemisfério Norte e o Sul de maneira magistral – nos deixou canções inesquecíveis, como todos sabem e cantam.
Uma delas, no entanto, soprada pela internet, nesta semana em que o planeta está ameaçado e acuado, com as pessoas trancafiadas em suas casas, nos fez subir um nó na garganta acompanhada de uma inevitável vontade de rir: “O dia em que a terra parou”.
Lançada em seu álbum de 1977, um dos últimos de sua curta e profícua carreira, a canção batiza o disco. Na mesma bolacha que trazia a emblemática “Maluco Beleza”, uma espécie de autobiografia do Raulzito, está lá a profecia fulminante do cantor, que nem os seus fãs mais ardorosos sonharam que, um dia, tantas décadas depois, poderia fazer algum sentido.
Na canção, feita em parceria com Cláudio Roberto – a linda fase com Paulo Coelho já havia passado – Raul parecia prever a crise do coronavírus. Descreve com maestria o que se passa em diversos países da Europa, sobretudo na Itália. Ela antevê também, e não se iludam os caros leitores, o que está prestes a ocorrer nas Américas, se os seus governos tiverem algum juízo.
Em um texto declamado entre o refrão e a primeira estrofe, Raul dispara:
Foi assim
No dia em que todas as pessoas
Do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado em todo o planeta
Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém ninguém
Logo a seguir, com maestria, ele descreve o Estado em plano estacionário, através dos seus profissionais, remunerados ou não, e suas relações de trabalho:
O empregado não saiu pro seu trabalho
Pois sabia que o patrão também não tava lá
Dona de casa não saiu pra comprar pão
Pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão, também não tava lá
E o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar
O ciclo de Raul se completa nas coisas espirituais, da alma e do aprendizado, nos pedindo a mesma reflexão que o coronavírus nos desperta hoje, presos em um todo que ninguém mais consegue entender como e porque ainda funciona:
E nas Igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar
Ao final, em uma súbita mudança, o compositor salta para as forças do mesmo Estado que aprisiona, cria a doença e cobra a cura:
O comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado também não tava lá
E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor também não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar
Coincidência ou não, nesses tempos de medos e incertezas, Raul nos traz mais uma vez alento e sabedora. Naqueles idos também obscuros, mas de tantas esperanças, de 1977, não poderíamos jamais imaginar que, 43 anos depois, a terra iria de fato, parar.
Jampa Web Jornal
Fonte: JWJ/Jorge Correia/J.Alves/Por Julinho Bittencourt
Jornalista, editor de Cultura da Fórum, cantor, compositor e violeiro com vários discos gravados, torcedor do Peixe, autor de peças e trilhas de teatro, ateu e devoto de São Gonçalo - o santo violeiro.
Pequenas considerações sobre a crise do coronavírus e a canção “O dia em que a terra parou”, de Raul Seixas e Cláudio Roberto
Raul Seixas, o nosso Raulzito, sempre teve um quê de profeta. Não à toa, seus fãs, muitas vezes, parecem mais seguidores. Uma espécie de Antônio Conselheiro do rock tupiniquim – e Raul lidava com essas distâncias entre o hemisfério Norte e o Sul de maneira magistral – nos deixou canções inesquecíveis, como todos sabem e cantam.
Uma delas, no entanto, soprada pela internet, nesta semana em que o planeta está ameaçado e acuado, com as pessoas trancafiadas em suas casas, nos fez subir um nó na garganta acompanhada de uma inevitável vontade de rir: “O dia em que a terra parou”.
Lançada em seu álbum de 1977, um dos últimos de sua curta e profícua carreira, a canção batiza o disco. Na mesma bolacha que trazia a emblemática “Maluco Beleza”, uma espécie de autobiografia do Raulzito, está lá a profecia fulminante do cantor, que nem os seus fãs mais ardorosos sonharam que, um dia, tantas décadas depois, poderia fazer algum sentido.
Na canção, feita em parceria com Cláudio Roberto – a linda fase com Paulo Coelho já havia passado – Raul parecia prever a crise do coronavírus. Descreve com maestria o que se passa em diversos países da Europa, sobretudo na Itália. Ela antevê também, e não se iludam os caros leitores, o que está prestes a ocorrer nas Américas, se os seus governos tiverem algum juízo.
Em um texto declamado entre o refrão e a primeira estrofe, Raul dispara:
Foi assim
No dia em que todas as pessoas
Do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado em todo o planeta
Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém ninguém
Logo a seguir, com maestria, ele descreve o Estado em plano estacionário, através dos seus profissionais, remunerados ou não, e suas relações de trabalho:
O empregado não saiu pro seu trabalho
Pois sabia que o patrão também não tava lá
Dona de casa não saiu pra comprar pão
Pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão, também não tava lá
E o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar
O ciclo de Raul se completa nas coisas espirituais, da alma e do aprendizado, nos pedindo a mesma reflexão que o coronavírus nos desperta hoje, presos em um todo que ninguém mais consegue entender como e porque ainda funciona:
E nas Igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar
Ao final, em uma súbita mudança, o compositor salta para as forças do mesmo Estado que aprisiona, cria a doença e cobra a cura:
O comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado também não tava lá
E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor também não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar
Coincidência ou não, nesses tempos de medos e incertezas, Raul nos traz mais uma vez alento e sabedora. Naqueles idos também obscuros, mas de tantas esperanças, de 1977, não poderíamos jamais imaginar que, 43 anos depois, a terra iria de fato, parar.
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