A comunicação promíscua
A voz dos governos no Brasil se tornou uma extensão do marketing eleitoral. A autopromoção dos políticos, com dinheiro público, se disseminou no país, viciando o jogo da democracia
NO CENTRO DO PODER
O marqueteiro João Santana orienta a presidente Dilma em debate da campanha presidencial de 2014. Construir a imagem se tornou a principal preocupação dos governantes (Foto:Eduardo Knapp/Folhapress)
No Brasil, parte do papel antes exercido pelas empreiteiras na promiscuidade entre poder político e o capital privado foi transferida para o ramo das empresas que agenciam a comunicação a serviço dos governantes. O tempo em que os governos se gabavam de transformar as cidades num “canteiro de obras” é passado. Hoje, o velho estilo saiu do centro das atenções. Agora é a vez do político comunicador. O sujeito tem de ser bom de televisão. No núcleo estratégico do poder, as receitas para comunicar os feitos valem muito mais do que aquelas para realizá-los. Rigorosamente, até mesmo a ideia de comunicar os feitos perdeu atualidade.
Hoje, comunicar se tornou o feito em si. Não é mais a comunicação que se presta a tornar conhecidas as obras realizadas. São as obras que, se necessárias ao projeto de comunicação, ilustram e dão materialidade à imagem que a autoridade pretende forjar para si mesma. Construir a imagem é o destino de todo o esforço dos governantes – mesmo que, para isso, alguns hospitais, viadutos e sistemas de saneamento sejam necessários. As obras se converteram em um acessório do “bem principal”, que é a comunicação.
Por isso, as empreiteiras se deslocam, progressivamente, do centro para a periferia da estratégia política. É verdade que elas ainda representam a fatia mais polpuda das doações para as campanhas eleitorais, mas se afastam gradativamente do centro de inteligência das estratégias políticas. Esse centro passou a ser ocupado por agências de marketing eleitoral ou de comunicação política. Hoje, a estratégia de comunicação dos candidatos, dos partidos e dos governantes participa da concepção e da gerência das relações promíscuas que definem os vínculos entre os poderes econômico e político. O que conta, agora, mais que a construção de pontes e viadutos, mais que a construção de usinas hidrelétricas, é a construção da imagem. E essa imagem se faz pelos métodos da publicidade comercial.
Nesse novo contexto, a comunicação de governo funciona cada vez mais como prolongamento dos filmes partidários da campanha eleitoral. Não apenas a linguagem, mas também as equipes responsáveis pelas peças publicitárias dos governos e pelos filmes do horário eleitoral costumam ser as mesmas. Esse é um mercado que se autonomizou para dar nascimento a uma indústria com identidade própria. O negócio frutificou, ganhou regras próprias e um nome relativamente pomposo: o bilionário campo do marketing político. Os dutos de abastecimento dessa nova indústria são os contratos com governos e partidos políticos, às vezes simultâneos.
É por aí que os governantes, os partidos e suas agências aprenderam a fazer e a financiar a campanha eleitoral fora do período eleitoral. A máquina, azeitada e célere, funciona muito bem. Pergunta: será que alguém acredita em filmetes de otimismo governista do tipo em que a metrópole (pode ser São Paulo, Rio de Janeiro ou outra grande cidade qualquer) aparece como uma musa deslumbrante, com ruas imaculadas e calçadas que são passarelas, em que se pode caminhar sem medo, pois a iluminação é digna de um estúdio cinematográfico, os policiais sorriem como garçons, e onde os postos de saúde são tão aprazíveis que dá até vontade de ficar doente? Resposta: não, as pessoas não acreditam. O telespectador, pobre dele, assiste ao filme e em seguida olha pela janela em busca de uma migalha que seja da urbe publicitária, mas nada do que é mostrado na tela se parece com a vida real.
Mas, dada a repetição intensiva, a fórmula traz dividendos eleitorais. Não pelo que tem de crível, mas pelo que tem de eficiência em fixar na cabeça do público o nome do político, do partido ou a marca da gestão. Embora não consiga se passar por verdade, a propaganda de governo tem a inestimável capacidade de gerar familiaridade entre o telespectador e a turma instalada no poder. Torna o político um pouco mais conhecido. Faz com que as pessoas se lembrem dele – e essa lembrança, quando a campanha eleitoral começar oficialmente, é uma vantagem que vale mais que ouro.
Os estrategistas de imagem dos governos sabem que, de alguma forma, a técnica – regada a bilhões – vai acabar surtindo efeito. Sabem que, se baterem na tecla da propaganda caríssima e ilusionista, o cidadão vai acabar se lembrando daquela marca, daquele rosto, daquele governante, como alguém que se lembra de uma celebridade ou de um ator muito famoso. O que esses estrategistas buscam, no fim das contas, é ficar na liderança dos nomes mais lembrados pelo eleitor. E operam na mais absoluta tranquilidade. Não há lei que possa impedi-los de aumentar a gastança e de se esmerar nesse esporte que é a única unanimidade entre as diversas agremiações que se batem na política brasileira: a autopromoção consentida, paga pelo Erário. Se os programas sociais de saúde, moradia e educação crescessem na mesma proporção que a promoção pessoal de governantes, a vida real seria a melhor propaganda do mundo. Mas ela não é. A publicidade dos governos aumenta com base no termômetro da infelicidade dos governados. Ela vende o céu porque a vida é um inferno. O instituto tácito da publicidade oficial ilimitada também constitui um privilégio acessível apenas aos que já estão no poder. Graças a ela, os governantes têm muito mais exposição nos meios de comunicação do que qualquer oposicionista. Têm muito mais chance de promover a si mesmos sem gastar um tostão do próprio bolso. E não apenas isso. O instituto da publicidade oficial ilimitada (leia-se: a propaganda governista sem pejo nem pudor) trava um combate aberto ao princípio democrático da alternância de poder. Ao tentar convencer o eleitor de que o governo em curso (qualquer que seja) é o melhor do mundo e merece ser reeleito, desequilibra a disputa, vicia o jogo.
Deu-se, no interior do Estado brasileiro, algo que ainda não foi suficientemente compreendido: a comunicação oficial se deixou açambarcar pelo método da publicidade mais ligeira e menos respeitosa que existe. Esse é um dos motivos pelos quais as distinções entre a propaganda eleitoral e a comunicação oficial praticamente caíram por terra, fazendo com que a voz oficial dos governos seja o prolongamento da voz publicitária das campanhas eleitorais.
Trecho editado do livro O Estado de Narciso, lançado pela Companhia das Letras
Jampa Web Jornal
época/Eugênio Bucci
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